sexta-feira, 6 de abril de 2012


Elementos para pensarmos sobre maternidades na contemporaneidade

Patrícia Abel Balestrin
(texto escrito em 2006 para discussão em aula sobre gênero e maternidade)

Se folhearmos jornais e revistas da atualidade não será difícil encontrarmos inúmeras representações de maternidade que, muitas vezes, estão associadas ao chamado “instinto materno". Cuidar, dedicar-se inteiramente a este cuidado, amar de forma incondicional são algumas das características veiculadas na mídia e nos programas de saúde que posicionam o ser mulher e o ser mãe, muitas vezes, como praticamente sinônimos.

Um exemplo disto pode ser percebido na matéria publicada no jornal Zero Hora do dia 04/09/2006 sobre uma sessão de amamentação coletiva que fez parte da programação prévia do Encontro Nacional de Aleitamento Materno. Cito apenas uma parte da reportagem para impulsionar nossas reflexões:

“Convencida da importância da amamentação, Débora mostrava orgulhosa a saúde da primeira filha. A mãe resolveu se dedicar integralmente à tarefa de dar o peito durante o primeiro ano de vida dela. Para isso, parou de trabalhar.
- E o pai tem participação importante nesse processo. É ele quem ajuda a criar o ambiente propício para a amamentação e também assume a responsabilidade em sustentar a família enquanto eu estiver cuidando da Eduarda – afirmou [a mãe de Eduarda].”

A matéria enfatizava o esforço das mães que mesmo com o fortíssimo vento na capital, não deixaram de participar do evento. A mãe de Eduarda parece orgulhosa com a decisão de ter largado tudo para se dedicar aos cuidados da filha e de terem estabelecido em seu lar a conhecida ordem divisória: de um lado, o pai provedor e, de outro, a mãe cuidadora. Se, de certo modo, esta mãe parece realizada com tal escolha, imagino o que as outras mães podem sentir e pensar ao ler uma matéria como esta? Sentir-se-iam culpadas por não estarem se dedicando integralmente a este cuidado que deve ser intensificado nos primeiros meses de vida? Ao pai parece ficar a parcela de ajudar a mãe a ser mais mãe neste primeiro momento, estimulando-a naquilo que, afinal, apenas ela pode fazer...

Ao que parece, este encontro discutiu intensamente os benefícios da amamentação, mas será que se discutiram também os prejuízos maternos? Ou será proibido falar em prejuízos neste tipo de campanhas? O que vale aqui é a glorificação da maternidade em detrimento da visibilidade dos aprisionamentos que também estão se produzindo em tais práticas?

Dagmar Meyer (2002) no texto intitulado “As mamas como constituintes da maternidade: uma história do passado?” faz uma análise cultural em que procura “relacionar as condições de emergência de políticas que definiam a maternidade em articulação com o aleitamento materno nas sociedades ocidentais com a configuração atual dessa política no Brasil”. (p.379) A autora utiliza para análise “aspectos/informações extraídos, principalmente: da Lição 1 do Manual de Manejo e Promoção do Aleitamento Materno (Manual de 1993)...; do site que o Ministério da Saúde mantém para divulgar o Programa; de artigos de jornais do Rio Grande do Sul e, ainda, de folhetos informativos produzidos na Semana Estadual do Aleitamento Materno.”(p.379-380)

Dagmar Meyer, a partir de uma perspectiva pós-estruturalista dos Estudos Feministas e Estudos Culturais, nos leva a problematizar discursos que têm se produzido em torno da maternidade e da amamentação desde o século XVIII, mostrando-nos que nem sempre esses discursos convergem e convivem de forma harmônica, pelo contrário, produzem múltiplas e conflitantes representações: “todas as representações de mulher, maternidade ou amamentação produzem sentidos que funcionam competindo entre si, deslocando, acentuando ou suprimindo convergências, conflitos e divergências entre diferentes discursos e identidades; mas são algumas delas que, dentro de determinadas configurações de poder, acabam se revestindo de autoridade científica e/ou se transformando em senso comum, a tal ponto que deixamos de reconhecê-las como representações.”(p.385)- ou seja, deixamos de reconhecê-las como verdades que foram construídas e não naturalmente dadas e acabam por se constituir em verdades inquestionáveis – “É assim que uma delas passa a funcionar, num determinado contexto sócio-histórico e cultural, como sendo a melhor ou a verdadeira maternidade, aquela que se transforma em referência das ações assistenciais e educativas em saúde e a partir da qual as outras maternidades são classificadas e valoradas".(p.386)

Evidentemente é de se perguntar: se algo que é tido como tão natural e instintivo precisaria sofrer tantos processos de pedagogização e disciplinamento?

Fragmentos de uma pesquisa:
Representações de sexualidade e maternidade num
curso de formação de professoras

Na pesquisa que estou realizando que tem como questão central “onde está a sexualidade num curso de formação de professoras?”, já é possível identificar algumas representações de sexualidade que talvez possamos associá-las à maternidade. Por ser um curso formado basicamente por mulheres[1] existe uma marca de gênero bastante significativa neste cenário escolar. Um curso de mulher para mulher, uma profissão que segue ainda feminizada. Neste sentido, é preciso considerar que homens e mulheres experimentam e vivenciam a sexualidade de formas diferentes. Parece existir um jeito feminino e um jeito masculino de lidar com o sexo e com a sexualidade já que, em nossa cultura, para cada sexo (mulher/homem) uma identidade de gênero (feminilidade/masculinidade) e uma identidade sexual “normal” lhe são compulsoriamente atribuídas. Existem normas regendo tais comportamentos.

A norma que rege a vivência da sexualidade tanto para homens como para mulheres é pautada na heteronormatividade. E quando o sujeito “escapa” à norma, a tendência é culpabilizar ou a família ou a escola por terem sido relapsas e/ou incompetentes em ensinar o jeito correto de se relacionar afetivamente, ou seja, que a escolha do objeto de desejo deve ser em direção a alguém do sexo oposto. Seria preciso tantos investimentos, terapêuticas e delimitações acerca dos desvios da norma se, de fato, as identidades sexuais fossem dadas naturalmente e se constituíssem de forma assim tão definitiva num determinado período da vida?

No que se refere a este investimento heteronormativo, a ordem para os meninos seria: a escolha do objeto de desejo deve ser por uma menina e quanto mais cedo isto ficar evidente, melhor; mais garantida estará a norma heterossexual e menos trabalho para as professoras, pais e mães neste sentido. Em relação às meninas, a espera pelo desejo do sexo oposto pode estar intimamente relacionada aos modos como desempenha sua feminilidade e, ainda que muitas transformações estejam em movimento, parece existir um desejo constante de se vincular determinados tipos de feminilidade a maiores ou menores chances de conseguir um “bom parceiro”. Então se percebe que os meninos/homens têm sido os maiores alvos de ações homofóbicas, enquanto que as meninas/mulheres o sejam de ações sexistas – a elas cabe investir mais na afirmação da identidade de gênero, enquanto que a eles, na afirmação da identidade sexual.

Existem inúmeros mecanismos que, de uma forma ou de outra, dentro e fora da escola, “ensinam” modos de viver a sexualidade, os prazeres, os desejos, as vontades, movimentando os processos de construção de identidades sexuais. Guaciro Louro (2000) afirma que: “Na escola, pela afirmação ou pelo silenciamento, nos espaços reconhecidos e públicos ou nos cantos escondidos e privados, é exercida uma pedagogia da sexualidade, legitimando determinadas identidades e práticas sexuais, reprimindo e marginalizando outras.”

Num curso que é formado basicamente por mulheres, talvez fique ainda mais evidente que a sexualidade não tem a mesma centralidade na constituição das feminilidades como o tem para as masculinidades. Podemos até supor que uma expressão máxima da sexualidade feminina ainda tem sido atribuída ao exercício de uma espécie de maternidade. Parece existir uma expectativa de que as mulheres, neste contexto escolar, manifestem seu “lado maternal” de qualquer jeito e a qualquer custo, numa interpelação para que se dediquem à profissão, ao curso, ao cuidado em geral como uma mãe deve dedicar-se ao/à filho/a. O tão valorizado “instinto materno” deve manifestar-se não apenas em direção aos/às próprios/as filhos/as, mas em direção às crianças com quem trabalham, ou ainda entre as próprias colegas, e entre estudantes e professoras/supervisoras. Acolher, auxiliar, cuidar daquelas que porventura estejam, em determinado momento, mais fragilizadas são características que passam a ser mais valorizadas e reconhecidas neste cenário “tipicamente” feminino. Aquelas que não manifestam tais características parecem sofrer algum tipo de rechaço por parte das outras.

Percebemos que a profissão-professora ainda é muito associada à profissão-mãe. Num curso que prepara mulheres para trabalharem com crianças é preciso haver um investimento nesta capacidade dessas futuras professoras de cuidar, nutrir, acolher. Não está em questão aqui o quanto isto é bom ou ruim, se é produtivo ou não tais atributos nas práticas educativas. Mas talvez seja interessante pensarmos como essas representações de mãe e professora foram se associando uma à outra ao longo da história e perdurando de determinadas formas e não de outras; quando torna-se possível e desejável que tais representações sejam ressignificadas e de que modos? quando entram em conflito com outras representações que parecem não ser tão bem- vindas nos espaços escolares?

Referências:
* LOURO, Guacira. (org.). Pedagogias da Sexualidade In: LOURO, Guacira. O Corpo Educado – Pedagogias da sexualidade. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, p. 7-34, 2000
* MEYER, Dagmar. As mamas como constituintes da maternidade: uma história do passado? In: Mercado, Francisco; Gastaldo, Denise; Calderón, Carlos. Paradigmas y diseños de la investigación cualitativa em salud. Uma antologia iberoamericana. Guadalajara: Universidad de Guadalajara/ Universidad Autónoma de Nuevo León, 2002: 375-402

* Zero Hora, Porto Alegre, 04 de setembro de 2006, p. 35

[1] Atualmente apenas um rapaz realiza este curso, encontrando-se no primeiro semestre. Tanto as turmas do segundo e terceiro semestres, como a equipe diretiva, as professoras e supervisoras de estágio são todas mulheres.

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