Masculinidade Heterossexual e
Pedofilização: o universo infantil como recurso erótico em revistas masculinas
Adriane Peixoto
Câmara
(PPGEdu/UFRGS)
Introdução
O objetivo
principal do presente trabalho é levantar subsídios para uma discussão acerca
das questões relacionadas à masculinidade, mídia impressa, sexualidade e
pedofilização, pontos que considero nevrálgicos em minha dissertação de
Mestrado[1]. O objeto empírico desta investigação é a
Revista Sexy (ano de 2005)
Busco através das
perguntas que compõem este trabalho, uma articulação entre os investimentos
feitos pela revista com relação à masculinidade e a demanda para que mulheres
adultas se vistam como meninas. Tal referência ao universo infantil está longe
de ser uma representação de pureza e ingenuidade, ou seja, uma representação
dessexualizada, mas sim (especialmente em publicações dirigidas para o público
masculino heterossexual) são expostas mulheres muito sensuais que apresentam um
forte apelo erótico. Pretendo analisar, portanto, o universo infantil como
recurso erótico (ou seja, uma faceta do conceito de pedofilização), tanto nos
ensaios fotográficos como também em reportagens que abordem, de alguma maneira,
a sexualidade masculina.
Universos
analíticos iniciais: gênero, masculinidade, infância...
Nos anos 70 do
século XX, um conjunto de feministas anglo-saxãs referenciam o gênero em suas
análises e, mesmo assumindo diversos matizes, desde então, o conceito ganha
força nos anos 80 fomentando análises a respeito das relações entre os homens e
as mulheres. De uma maneira geral, o conceito acentua especialmente a parcialidade
das ‘verdades’ estabelecidas, bem como argumenta que as “diferenças e
desigualdades entre mulheres e homens eram [são] social e culturalmente
construídas e não biologicamente determinadas” (MEYER, 2005, p.15, acréscimo
meu). De uma maneira geral, o conceito de gênero, em conformidade com a
teorização pós-estruturalista, privilegia uma abordagem descontínua e
relacional, que rejeita as investigações fundamentadas em teorias
essencialistas e biologizantes acerca das relações entre os gêneros, o corpo, o
sexo e a sexualidade (MEYER, 2004; LOURO, 1997, 2002).
Com relação à
masculinidade, é preciso anunciar, logo de início, que o fato de explorar
possibilidades investigativas a respeito da masculinidade, não implica a tarefa
de reificar uma masculinidade, nem buscar traços de uma possível ‘essência’
masculina. A proposta aqui será sinalizar fundamentalmente o caráter localizado
e histórico da masculinidade, em contraposição à idéia de se pensar os homens
(sempre no plural) como algo fixo ou natural. Não caberá em nenhum momento, a
tentativa de estabelecer ‘verdades’ absolutas e definitivas sobre os sujeitos
masculinos.
A masculinidade
não pode ser entendida de maneira isolada, ou seja, descolada da própria
feminilidade. Autores como Robert Connell (1995, 1997) e Seffner (2003) apontam
que a masculinidade não é um conjunto coerente, cristalizado, do qual se
extraia elementos para compor uma ciência generalizante. Explorar tais
possibilidades investigativas significa fundamentalmente trilhar percursos descontínuos
e fragmentados, pois a própria masculinidade não se constitui como um bloco
monolítico, mas sim como “fruto de tensões, disputas e interesses próprios da
cultura, e tem sua existência marcada por essas disputas de significado [...]”
(SEFFNER, 2003, p.124-5).
Segundo Oliveira
(2004) a palavra masculinidade deriva do termo latino masculinus, e sua
utilização data de meados do século XVIII, “no momento em que se realizava uma
série de esforços científicos no intuito de estabelecer critérios mais explícitos
de diferenciação entre os sexos” (p.13). Para este autor, estão intimamente
relacionados os ideais modernos de ciência universal e racionalidade, (ou seja,
a concepção de que a razão e a ciência libertariam a humanidade da ignorância e
das ‘trevas’), com os ideais de masculinidade, pois a ciência, tal como
descrita, contribuiu com diversos elementos para a consolidação de uma
supremacia masculina. Um exemplo disso é a própria noção de impulso sexual
masculino, tomando como base científica a teoria darwiniana, que “iria emergir
com força, no final do século XIX, principalmente na sexologia, estabelecendo o
padrão para distinguir o normal do patológico” (2004, p.56).
Na atualidade,
marcada por grandes contestações das certezas que fundaram a sociedade moderna,
inclusive a própria concepção de ciência, a masculinidade, de uma maneira
geral, torna-se o foco das mais diversas atenções, não somente dos
pesquisadores, mas também dos veículos de comunicação, tais como as revistas,
os jornais, os programas de televisão e as propagandas publicitárias, que se
perguntam cada qual à sua maneira, o lugar do homem na sociedade atual[2]. Certamente, tal como aponta Monteiro
(2000b), a resposta para a pergunta ‘o que é ser homem’ não é mais tão óbvia
para todos.
Do ponto de vista
acadêmico, as investigações acerca das masculinidades apresentam uma gama
variada de origens teóricas e analíticas. Segundo Margareth Arilha, et al.
(1998), é difícil desvincular os estudos sobre as masculinidades, do Movimento
Feminista e das produções teóricas específicas desse campo. Como conseqüência
disso, os estudos sobre as masculinidades têm-se dividido nas seguintes
vertentes: 1) Os aliados do feminismo: reconhecem as teorias feministas e de
gênero como base teórica que fundamenta as análises acerca das masculinidades e
2) Os estudos autônomos: não estão vinculadas às discussões sobre gênero ou
mesmo às conquistas das mulheres (op. cit.).
Acredito que exista
ainda uma segunda característica em que podemos diferenciar as produções
acadêmicas acerca das masculinidades: 1) Os trabalhos que tratam de investigar
a construção social da masculinidade, ou seja, esses pesquisadores buscam do
ponto de vista social e cultural, os elementos que podem ou não constituir a
masculinidade. São trabalhos que geralmente falam em uma masculinidade que está
no singular (BOURDIEU, 1995, OLIVEIRA, 2000; 2004). 2) Os trabalhos que tratam
de desconstruir a noção de masculinidade como um dado estático, atemporal e que
é somente herdeira de uma representação masculina hegemônica. Os autores falam
em masculinidades (plural), além de acentuarem as mudanças e transformações nas
identidades de gênero masculinas (CONNELL, 1997; SEFFNER, 2003, MONTEIRO,
2000a).
Feitas as
considerações com relação ao conceito de gênero e sua relação com a
masculinidade, é necessário tematizar a infância com o objetivo de
contextualizar o conceito de pedofilização. A infância não é um conjunto
homogêneo, estável, mas sim como um processo construído social e
historicamente, existindo, portanto, um conjunto de discursos sobre o que é ser
criança.
Muitas
transformações na situação das crianças se operaram desde as grandes mudanças
que deram origem à Modernidade. No Ocidente, especialmente a partir da
Revolução Francesa, a criança começa a ser percebida, de maneira mais efetiva,
como o futuro adulto sendo dessa forma, necessário prepará-la através da
educação escolar. Nas formulações modernas, sobretudo no campo da Educação e da
Psicologia, são construídas representações em que as crianças são concebidas
como sujeitos que possuem características próprias e peculiares traçando assim,
uma ‘natureza infantil’, que necessita, portanto, de intervenção: “inocentes,
frágeis, imaturas, maleáveis, naturalmente boas, seres que constituem promessa
de um futuro melhor para a humanidade” (BUJES, 2005, p.190). É a partir desta
época que uma intensa produção discursiva em torno das crianças produz uma
infantilização das mesmas.
Juntamente com a
questão da pedagogização da infância, ou seja, o fato da escola moderna
tornar-se um locus de produção de saberes a respeito dos infantes, questões
relacionadas com a violência e as relações sexuais entre crianças e adultos
ganham também uma maior visibilidade. É a partir das intensas modificações a
respeito dos direitos dos cidadãos que a proteção à infância, tanto no que diz
respeito aos cuidados mais gerais, como a proteção aos possíveis violentadores
sexuais passa a ser questão, sobretudo no século XX relacionada aos direitos
humanos. Proteger uma criança, portanto, é uma questão que diz respeito a
assegurar os direitos humanos básicos[3].
A pedagogização e
a infantilização das crianças, aliadas às redes de proteção dos direitos das
mesmas, se configura no que chamamos de ‘mundo infantil’, diferente do ‘mundo
adulto’. Uma das conseqüências dessa separação de ‘mundos’ é a própria questão
das relações sexuais entre adultos e crianças, antes negligenciadas, aparecem,
sobretudo no Estado Moderno, como um problema e um fenômeno, precisando ser
tratado, escrutinado, exterminado. Os sujeitos que circulam entre o “mundo
infantil” e o “mundo adulto” passam a ser intensamente vigiados, sobretudo
contemporaneamente.
Importa neste
momento, registrar as mudanças que se operam no conceito de infância, pois, se
os projetos modernos de infância constroem um tipo de representação de criança
que exige uma pedagogização, as mudanças intensas nas configurações sociais da
atualidade “[...] têm introduzido quebras, rachas, fissuras, na bem constituída
arquitetura discursiva sobre a infância que nos foi legada pelo Iluminismo ou
que nele se inspirou” (BUJES, 2005:186). Os mais diversos investimentos têm se
entrelaçado para constituir o que entendemos por infância. É interessante
perceber de que forma esses mesmos investimentos e representações correlatas à
infância têm sido fortemente resignificados, sobretudo numa época de acelerado consumo
e avanço tecnológico.
É na esteira deste
“império de consumo” contemporâneo que um conjunto de autores tais como Felipe
(1998, 2005a), Steinberg e Kincheloe (1999), Walkerdine (1999) entre outros,
analisam as novas concepções de infância produzidas nas e pelas relações de
consumo, através das pedagogias culturais. Segundo estes autores, a escola não
é mais o único espaço de aprendizado dos valores e significados culturais. Isso
significa apontar que, se a pedagogia teve que inventar uma criança e uma
infância para o projeto moderno civilizador, certamente as instâncias
midiáticas reinventam uma criança para o consumo de seus produtos: as crianças
não aparecem mais como inocentes e, principalmente, imaturas. Por exemplo, nas
propagandas publicitárias os meninos entendem tudo de computadores, video games
e os sistemas digitais, e as meninas aparecem como pequenas mulheres
provocantes[4], preocupadas com seus corpos, desfilando,
fazendo poses e demonstrando que sabem bem o que querem no momento das compras.
O conceito de
pedofilização está fortemente imbricado a este contexto contemporâneo de
consumo e resignifcação das imagens dos infantes. Felipe (2003, 2005a) tem
problematizado as conseqüências do consumo com relação à infância, pois o
mercado, através de grandes empresas, investe na imagem e na adoração da figura
infantil, na busca incessante de novos nichos de consumo. As crianças se
tornaram ávidas consumidoras, além de serem objetos de consumo. Esse mecanismo
do mercado acontece de maneira intensa através da publicidade, que demonstra a
nossos olhos, que qualquer motivo ou imagem que possa estimular o consumo é
veiculada, vendendo e incentivando de maneira sedutora a compra de produtos
como uma grande novidade, mesmo não sendo. Existe, na publicidade atual, uma
urgência em se produzir necessidades. Steinberg e Kincheloe (2001, p.24) tratam
de tematizar a questão das propagandas voltadas para o universo infantil:
“corporações que fazem propaganda de toda a parafernália para crianças
consumirem promovem uma teologia de consumo que efetivamente promete redenção e
felicidade através do ato de consumo” (grifos dos autores).
O consumo
exarcerbado como um elemento significativo também atravessa o próprio conceito
de pedofilização: ao mesmo tempo que atos pedófilos são vigiados, escrutinados
e mesmo odiados, “[...] as crianças têm sido alvo de um forte apelo comercial,
sendo descobertas como consumidoras e, ao mesmo tempo, como objetos a serem
consumidos” (FELIPE & GUIZZO, 2003, cd-rom).
O corpo infantil
vem sendo alvo de constantes e acelerados investimentos. Com o surgimento dos
veículos de comunicação de massa, em especial a TV, as crianças passaram a ser
vistas como pequenos consumidores, e a cada dia são alvos constantes de
propagandas. Ao mesmo tempo em que elas têm sido vistas como veículo de
consumo, é cada vez mais presente a idéia da infância como algo a ser
apreciado, desejado, exaltado, numa espécie de ‘pedofilização’ generalizada da
sociedade (op.cit).
O conceito de
pedofilização, portanto, nos permite explorar de maneira investigativa a
curiosa contradição que tem se estabelecido em nossa cultura, a saber: as
campanhas de proteção à infância e combate à violência e pornografia infantil
estão lado a lado com imagens erotizadas das crianças, especialmente das
meninas (FELIPE, 2005a).
Landini (2000)
também aponta nesta direção ao estudar a pornografia infantil. Se por um lado,
fotos de crianças em poses sexuais são consideradas crime, por outro lado temos
uma cultura que erotiza a imagem da criança. Segundo ela não existe apenas
[...] uma
pornografia mas também uma erótica infantil, ou, em outras palavras, uma
erotização da imagem da criança. Não é difícil encontrar propagandas e anúncios
onde a criança é mostrada em pose sensual ou em contexto de sedução. Novelas
mostram crianças com o mesmo comportamento de adolescentes. Até mesmo as
músicas, seguindo a mesma linha da ‘música do Tchan’ ou ‘dança da boquinha da
garrafa’ com conteúdo bastante sexual, passaram a ser cantadas e dançadas pelas
crianças (2000:36-7).
Masculinidades e
Sexualidades: mídia e construção do desejo
As revistas, de
uma maneira geral, se constituem como um espaço de grande circulação de
representações acerca da masculinidade e da feminilidade. É preciso ter em
mente que as revistas não atuam num espaço vazio ou neutro de significados,
muito pelo contrário. As reportagens, fofocas, dietas, receitas, ensaios
fotográficos, entre outros estão atravessados por representações e significados
presentes na cultura e que, por sua vez, atuam constituindo os sujeitos.
A partir da ótica
dos Estudos Culturais, as revistas masculinas serão tomadas neste trabalho
enquanto artefatos culturais. Segundo Silva (2003), os artefatos culturais são
“sistemas de significação implicados na produção de identidades e
subjetividades, no contexto de relações de poder” (p.141-2). Portanto, para o
âmbito deste trabalho, as revistas não se tratarão de simples sistemas de
informação ou entretenimento, mas sim como uma forma de conhecimento acerca da
masculinidade que certamente atravessará as identidades sexuais e de gênero dos
homens e das mulheres. Douglas Kellner (1995) contraria a idéia de que os
artefatos culturais possuem um caráter neutro ou ainda meramente informativo:
Embora os
apologistas da indústria da publicidade argumente, que a publicidade é
predominantemente informativa, um exame cuidadoso das revistas, da televisão e
de outros anúncios imagéticos indicam que ela é avassaladoramente persuasiva e
simbólica e que suas imagens não apenas tentam vender o produto, ao associá-lo
com certas qualidades socialmente desejáveis mas que elas vendem também uma
visão de mundo, um estilo de vida e um sistema de valor congruentes com os
imperativos do capitalismo de consumo (p.113).
Podemos afirmar
que o espaço das revistas masculinas se configuram em um importante locus de
circulação e produção de significados, representações e saberes a respeito da
masculinidade, sobretudo nos contextos contemporâneos. Ao elegerem o tema da
sexualidade como foco central de suas reportagens, as revistas receitam,
indicam e sugerem determinados comportamentos sexuais aos seus leitores, tanto
femininos quanto masculinos.
O universo
masculino sempre desfrutou de uma maior liberalidade no que se refere à
sexualidade, e isso é evidente com relação às revistas masculinas, tal como
demonstra a própria revista Sexy (COSTA, 1995). A partir de tal premissa, que é
principalmente cultural, a revista procura reforçar uma supremacia masculina no
terreno da sexualidade, incentivando um comportamento sexual masculino
liberado. Em um processo constante de estimulação da sexualidade masculina, a
revista trabalha a partir de uma crença de que o erotismo masculino (isto é, a
excitação) é fundamentalmente visual, ao contrário do erotismo feminino, que seria
mais tátil. Fundamentada a partir desse regime de verdade, a revista Sexy expõe
uma grande quantidade de mulheres nuas em suas páginas, dando à nudez feminina
uma licenciosidade, ou seja, é sempre permitido ao homem olhar, desfrutar as
fotos desnudas das mulheres.
A revista investe
numa representação de masculinidade que considera o homem como um ‘voyeur
erótico’ pressupondo também que a “arte de contemplação pornográfica só pode
ser feita pelos olhos voyeristas masculinos” (COSTA, 1995, p. 12). Neste investimento
existe uma espécie de ‘matemática sexual’, que, exposta na revista Sexy ensina
somente a ‘conta de somar’: “mulheres sensualmente nuas + vontade + desejo +
pornografia = homem viril, másculo” (idem). A revista investe, portanto, numa
construção e afirmação da sexualidade masculina a partir dos termos da referida
adição.
A revista Sexy
procura convencer o seu leitor a moldar-se num tipo de comportamento sexual
masculino. O homem deve ter o erotismo à flor da pele, pensar sempre em
mulheres, desejá-las, tê-las, comê-las sexualmente. O desejo masculino de
‘abocanhar’ as mulheres, no sentido de degustá-las sexualmente [...] (ibidem).
Neste trabalho
quero me prender com especial atenção, em como a revista Sexy articula a
masculinidade heterossexual (seu público-alvo), com a utilização do universo
infantil como recurso erótico. Um dos objetivos gerais deste trabalho é,
portanto, buscar subsídios para problematizar com maior afinco a sexualidade
masculina e seu alcance em nossa cultura, especialmente quando determinadas
crenças, como por exemplo, a noção difundida do ‘impulso sexual masculino’
instituem regimes de verdade que, por sua vez, constituem de maneira
diferenciada e em complexas relações de poder, as sexualidades masculina e
feminina. Ao problematizar a masculinidade heterossexual na revista Sexy, busco
justamente entender como a sexualidade masculina é vista e interpretada na
cultura, uma vez que a revista não atua num espaço vazio de significados.
Para o âmbito
desta pesquisa, a sexualidade não será tematizada como uma essência fixa ou
estável dos sujeitos, mas sim como algo construído socialmente, resignificado
ao longo de suas vidas e de muitas maneiras. Para Louro (2001) os “rituais,
linguagens, fantasias, representações, símbolos e convenções” que constituem a
sexualidade são processos culturais e históricos, tal como os corpos, que,
mesmo possuindo uma materialidade apresentam significados e investimentos que
também são culturais e históricos.
Cabe então nos
perguntarmos como enxergamos a sexualidade, especialmente atravessada por
questões de raça, gênero e classe (WEEKS, 2001). Não me aterei neste momento
especificamente às questões de raça ou classe para pensarmos a sexualidade, mas
certamente a questão do gênero é relevante. Afinal de contas, como já referido
acima, as sexualidades masculina e feminina são percebidas e construídas de
maneiras distintas na cultura.
Para Weeks (2001),
por exemplo, a sexualidade feminina tem sido ao longo dos anos, definida em
relação à sexualidade masculina, ou seja, a sexualidade feminina tem sido
historicamente subsidiária da sexualidade do homem. Na tentativa de descrever
ou definir a sexualidade, a metáfora mais corriqueira é a idéia da sexualidade
como uma força incansável e avassaladora do ser humano. Tal metáfora está
intimamente relacionada às nossas concepções sobre o desejo masculino, ou ainda
a experiência sexual masculina. Isso significa apontar que, para este autor, a
linguagem da sexualidade, em nossa cultura, é uma linguagem masculina, de um
desejo masculino que sempre se impõe e é sempre avassalador.
[...] os sexólogos
frequentemente perpetuaram uma tradição antiga, que via as mulheres como ‘o
sexo’, como se seus corpos estivessem tão saturados de sexualidade que nem
havia necessidade de conceptualizá-la. Mas é difícil evitar a sensação de que,
em seus escritos e talvez também em nossa consciência social, o modelo dominante
de sexualidade é o masculino. Os homens são os agentes sexuais ativos; as
mulheres, por causa de seus corpos altamente sexualizados, ou apesar disso,
eram vistas como meramente reativas ‘despertadas para a vida’ pelos homens, na
significativa frase de Havelock Ellis (WEEKS, 2001, p. 41).
Felipe (2000) e
Louro (1998) ao analisarem a construção da masculinidade e suas representações
correlatas também salientam a estreita relação entre sexualidade e
masculinidade em nossas sociedades: a construção da masculinidade está
fortemente atrelada à sexualidade. Existe uma associação (e, por conseguinte,
um investimento também), quase que mecânica entre masculinidade e sexualidade,
onde “a representação do gênero masculino é articulada à sexualidade de um modo
mais central do que a do gênero feminino” (LOURO, 1998, p.44).
O que importa a
partir de tais apontamentos são os efeitos de verdade, ou seja, atentarmos para
o fato de como tais premissas e normas culturais ganham uma ‘materialidade’
através das relações sociais. Podemos explorar aqui um exemplo dessa
‘materialidade’: vivemos em uma sociedade onde as profissões historicamente
relacionadas às mulheres e ao universo feminino, viram fetiche e objeto de
desejo em fantasias sexuais masculinas. Profissionais tais como empregadas
domésticas, enfermeiras, secretárias, babás, comissárias de bordo (quem nunca
folheou uma revista e se deparou com a foto, por exemplo, de uma ‘enfermeira
erótica’?), e até mesmo figuras femininas que não possuem vínculo profissional,
tais como colegiais, lésbicas e noivas são comuns nos cenários de desejo
associados ao exercício da sexualidade masculina. Este tipo de vinculação
erótica às imagens destas mulheres podem ser encontradas através de acessórios
em sex shops e em ensaios fotográficos em revistas masculinas.
Entretanto,
importa registrar que tais figuras eróticas podem ser vistas também em espaços
menos especializados, tais como filmes, literatura geral, programas de TV,
propagandas publicitárias, que vendem, falam e transformam as imagens dessas
profissionais em figuras eróticas, sensuais, disponíveis e prontas para todo
tipo de fantasia sexual, explorando uma noção de quanto os homens estariam
sempre à mercê da sedução feminina, ou ainda, e o que mais nos importa neste
momento para problematizar as revistas masculinas: o fato de que estas mulheres
(profissionais ou não) estariam sempre à mercê dos desejos e fantasias
masculinas. Segundo Weeks (2001), do ponto de vista histórico, são os homens
que têm decidido e definido o que é necessário e desejável, sobretudo com
relação à sexualidade.
A partir deste
diferencial de poder, constituído por uma espécie de ‘supremacia sexual
masculina’, é que, ao abordar a questão da sexualidade, temos na cultura, a
construção de um ‘olhar masculino’, ou seja, um olhar bastante controverso que
objetifica (ou seja, transforma em objeto) e fetichiza as imagens das mulheres
como uma espécie de ‘sintoma’ e ‘mito’ da fantasia masculina, travestido de
naturalidade, de uma possível ‘essência’ sexual masculina. É necessário
perguntar se é este mesmo “olhar masculino” que objetifica e fetichiza as
imagens das mulheres, com sua supremacia em nossa cultura, também não tem
erotizado as imagens das crianças, especialmente as meninas.
Da mesma maneira
que questionamos aqui os olhares masculinos lançados às mulheres e seus corpos,
podemos nos perguntar se os olhares contraditórios que lançamos às meninas e
garotinhas como pequenas sedutoras (WALKERDINE, 1999), em programas e
propagandas da TV não são também os olhares masculinos. Cabe então perguntar:
será que tais olhares sugerem uma disponibilidade dos corpos infantis,
sobretudo dos corpos infantis femininos aos desejos adultos masculinos?
A demanda para que
as mulheres adultas se vistam como meninas, enfatizando dessa maneira, uma
imagem de sedução e ingenuidade atrelada a uma possível disponibilidade da
‘falsa criança’; da ‘falsa menina’ para o sexo, não seria uma demanda para a
sedução, conquista e consumo masculino em nossa sociedade? Através das revistas
masculinas, especialmente a revista Sexy, é que pergunto, se as fantasias
adultas sobre as crianças em nossa cultura, não por acaso, são também as
fantasias adultas masculinas de sexo e poder.
[...] fantasias
adultas sobre crianças e a erotização das meninas pequenas não é um problema
que diz respeito a uma minoria de pervertidos da qual o público em geral
deveria ser protegido. Trata-se de fantasias disseminadas na cultura, as quais
são também contrapostas, de forma igualmente vigorosa, por outras práticas
culturais, sob a forma de práticas de bem-estar psico-pedagógicas e sociais que
incorporam discursos da inocência infantil (WALKERDINE, 1999, p.84-5).
Para finalizar,
importa apontar para o fato de que tais fantasias adultas, que busco argumentar
através deste trabalho, são fantasias adultas masculinas, e não dizem respeito
a um grupo de ‘pervertidos’. É preciso que isso fique muito claro. Tal como a
autora acima apontou, estas fantasias são disseminadas na cultura, num espaço
altamente disputado de significados.
Além disso, cabe
ressaltar que a relação entre sexualidade masculina e o encantamento pela
juventude, bem como seu poder especialmente libidinoso e sedutor não é algo
exclusivo dos nossos tempos ou dos artefatos culturais. Na Ásia existe um mito
chinês que acredita que o sexo com uma virgem incrementa o trabalho e o poder,
além de tal crença ser também comum na África (LANDINI, 2000). Na Europa existe
também uma crença bastante comum de que ao deflorarem uma virgem, os homens
conseguiriam se curar de doenças infecciosas e sexualmente transmissíveis
(TATE, 1999). Santos et al (2004) apontam que “o desvirginamento de uma mulher
é ‘prato’ altamente cobiçado e sua conquista é generosamente celebrada no mundo
da auto-afirmação da masculinidade” (p.42) e que, o sexo com crianças e
adolescentes é uma das preferências sexuais apreciadas basicamente por dois
motivos: o primeiro seria o fato de que as jovens possuem vaginas e ânus
apertados, o que tornaria o sexo mais prazeroso, e, em segundo lugar, pela
“satisfação simbólica de manter o vigor sexual da juventude, perdido na
maturidade e na velhice, ou pelo desejo de se eternizar num corpo jovem” (op.
cit.).
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[1] Este trabalho está em andamento sob
orientação da Profª Drª Jane Felipe.
[2] A título de exemplo, existem os mais
diversos nomes que buscam explicitar as alternativas possíveis para o ‘novo
homem’: ‘metrosexual’, ‘übersexual’, ‘gay na medida’, ‘emo-boy’, ‘new bloke’,
‘metrogay’, ‘novo machão’, entre outros. Esse tipo de lista está sempre em
jornais, revistas e sites da internet.
[3] Segundo Felipe (2006) “a primeira
organização no mundo dedicada a combater maus-tratos na infância foi a New
Society for the Prevention of Cruelty to Children – NYSPCC (Sociedade de
Prevenção da Crueldade contra Crianças de Nova York), criada em 1894. Em 1977
foi criada a primeira organização internacional dedicada a combater e prevenir
os maus-tratos na infância: a International Society for the Prevention of Child
Abuse and Neglect – ISPCAN (Sociedade Internacional para a Prevenção de Abusos
e Abandono de Crianças. Já no Brasil, a primeira agência criada para esse fim
foi provavelmente o Centro Regional de Atenção aos Maus-Tratos na Infância –
CRAMI, de Campinas, SP, em 1985. Em 1988 foram criadas outras agências no ABC
Paulista e São José do Rio Preto. Nesse mesmo ano foi criada a ABRAPIA –
Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência.
(FELIPE, ‘Afinal, quem é mesmo pedófilo?’ No prelo).
[4] Para as campanhas do Natal/2005, uma
grande loja de departamentos exibiu uma propaganda onde uma garotinha ensinava
o Papai Noel a desfilar, a ter ‘estilo’ e ‘personalidade’. Aliás, a garotinha
não somente ensinava, mas ‘mandava’ o Papai Noel murchar ‘o barrigão’.
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