sexta-feira, 6 de abril de 2012


Masculinidade Heterossexual e Pedofilização: o universo infantil como recurso erótico em revistas masculinas

Adriane Peixoto Câmara
(PPGEdu/UFRGS)

Introdução

O objetivo principal do presente trabalho é levantar subsídios para uma discussão acerca das questões relacionadas à masculinidade, mídia impressa, sexualidade e pedofilização, pontos que considero nevrálgicos em minha dissertação de Mestrado[1]. O objeto empírico desta investigação é a Revista Sexy (ano de 2005)
Busco através das perguntas que compõem este trabalho, uma articulação entre os investimentos feitos pela revista com relação à masculinidade e a demanda para que mulheres adultas se vistam como meninas. Tal referência ao universo infantil está longe de ser uma representação de pureza e ingenuidade, ou seja, uma representação dessexualizada, mas sim (especialmente em publicações dirigidas para o público masculino heterossexual) são expostas mulheres muito sensuais que apresentam um forte apelo erótico. Pretendo analisar, portanto, o universo infantil como recurso erótico (ou seja, uma faceta do conceito de pedofilização), tanto nos ensaios fotográficos como também em reportagens que abordem, de alguma maneira, a sexualidade masculina.

Universos analíticos iniciais: gênero, masculinidade, infância...

Nos anos 70 do século XX, um conjunto de feministas anglo-saxãs referenciam o gênero em suas análises e, mesmo assumindo diversos matizes, desde então, o conceito ganha força nos anos 80 fomentando análises a respeito das relações entre os homens e as mulheres. De uma maneira geral, o conceito acentua especialmente a parcialidade das ‘verdades’ estabelecidas, bem como argumenta que as “diferenças e desigualdades entre mulheres e homens eram [são] social e culturalmente construídas e não biologicamente determinadas” (MEYER, 2005, p.15, acréscimo meu). De uma maneira geral, o conceito de gênero, em conformidade com a teorização pós-estruturalista, privilegia uma abordagem descontínua e relacional, que rejeita as investigações fundamentadas em teorias essencialistas e biologizantes acerca das relações entre os gêneros, o corpo, o sexo e a sexualidade (MEYER, 2004; LOURO, 1997, 2002).
Com relação à masculinidade, é preciso anunciar, logo de início, que o fato de explorar possibilidades investigativas a respeito da masculinidade, não implica a tarefa de reificar uma masculinidade, nem buscar traços de uma possível ‘essência’ masculina. A proposta aqui será sinalizar fundamentalmente o caráter localizado e histórico da masculinidade, em contraposição à idéia de se pensar os homens (sempre no plural) como algo fixo ou natural. Não caberá em nenhum momento, a tentativa de estabelecer ‘verdades’ absolutas e definitivas sobre os sujeitos masculinos.
A masculinidade não pode ser entendida de maneira isolada, ou seja, descolada da própria feminilidade. Autores como Robert Connell (1995, 1997) e Seffner (2003) apontam que a masculinidade não é um conjunto coerente, cristalizado, do qual se extraia elementos para compor uma ciência generalizante. Explorar tais possibilidades investigativas significa fundamentalmente trilhar percursos descontínuos e fragmentados, pois a própria masculinidade não se constitui como um bloco monolítico, mas sim como “fruto de tensões, disputas e interesses próprios da cultura, e tem sua existência marcada por essas disputas de significado [...]” (SEFFNER, 2003, p.124-5).
Segundo Oliveira (2004) a palavra masculinidade deriva do termo latino masculinus, e sua utilização data de meados do século XVIII, “no momento em que se realizava uma série de esforços científicos no intuito de estabelecer critérios mais explícitos de diferenciação entre os sexos” (p.13). Para este autor, estão intimamente relacionados os ideais modernos de ciência universal e racionalidade, (ou seja, a concepção de que a razão e a ciência libertariam a humanidade da ignorância e das ‘trevas’), com os ideais de masculinidade, pois a ciência, tal como descrita, contribuiu com diversos elementos para a consolidação de uma supremacia masculina. Um exemplo disso é a própria noção de impulso sexual masculino, tomando como base científica a teoria darwiniana, que “iria emergir com força, no final do século XIX, principalmente na sexologia, estabelecendo o padrão para distinguir o normal do patológico” (2004, p.56).
Na atualidade, marcada por grandes contestações das certezas que fundaram a sociedade moderna, inclusive a própria concepção de ciência, a masculinidade, de uma maneira geral, torna-se o foco das mais diversas atenções, não somente dos pesquisadores, mas também dos veículos de comunicação, tais como as revistas, os jornais, os programas de televisão e as propagandas publicitárias, que se perguntam cada qual à sua maneira, o lugar do homem na sociedade atual[2]. Certamente, tal como aponta Monteiro (2000b), a resposta para a pergunta ‘o que é ser homem’ não é mais tão óbvia para todos.
Do ponto de vista acadêmico, as investigações acerca das masculinidades apresentam uma gama variada de origens teóricas e analíticas. Segundo Margareth Arilha, et al. (1998), é difícil desvincular os estudos sobre as masculinidades, do Movimento Feminista e das produções teóricas específicas desse campo. Como conseqüência disso, os estudos sobre as masculinidades têm-se dividido nas seguintes vertentes: 1) Os aliados do feminismo: reconhecem as teorias feministas e de gênero como base teórica que fundamenta as análises acerca das masculinidades e 2) Os estudos autônomos: não estão vinculadas às discussões sobre gênero ou mesmo às conquistas das mulheres (op. cit.).
Acredito que exista ainda uma segunda característica em que podemos diferenciar as produções acadêmicas acerca das masculinidades: 1) Os trabalhos que tratam de investigar a construção social da masculinidade, ou seja, esses pesquisadores buscam do ponto de vista social e cultural, os elementos que podem ou não constituir a masculinidade. São trabalhos que geralmente falam em uma masculinidade que está no singular (BOURDIEU, 1995, OLIVEIRA, 2000; 2004). 2) Os trabalhos que tratam de desconstruir a noção de masculinidade como um dado estático, atemporal e que é somente herdeira de uma representação masculina hegemônica. Os autores falam em masculinidades (plural), além de acentuarem as mudanças e transformações nas identidades de gênero masculinas (CONNELL, 1997; SEFFNER, 2003, MONTEIRO, 2000a).
Feitas as considerações com relação ao conceito de gênero e sua relação com a masculinidade, é necessário tematizar a infância com o objetivo de contextualizar o conceito de pedofilização. A infância não é um conjunto homogêneo, estável, mas sim como um processo construído social e historicamente, existindo, portanto, um conjunto de discursos sobre o que é ser criança.
Muitas transformações na situação das crianças se operaram desde as grandes mudanças que deram origem à Modernidade. No Ocidente, especialmente a partir da Revolução Francesa, a criança começa a ser percebida, de maneira mais efetiva, como o futuro adulto sendo dessa forma, necessário prepará-la através da educação escolar. Nas formulações modernas, sobretudo no campo da Educação e da Psicologia, são construídas representações em que as crianças são concebidas como sujeitos que possuem características próprias e peculiares traçando assim, uma ‘natureza infantil’, que necessita, portanto, de intervenção: “inocentes, frágeis, imaturas, maleáveis, naturalmente boas, seres que constituem promessa de um futuro melhor para a humanidade” (BUJES, 2005, p.190). É a partir desta época que uma intensa produção discursiva em torno das crianças produz uma infantilização das mesmas.
Juntamente com a questão da pedagogização da infância, ou seja, o fato da escola moderna tornar-se um locus de produção de saberes a respeito dos infantes, questões relacionadas com a violência e as relações sexuais entre crianças e adultos ganham também uma maior visibilidade. É a partir das intensas modificações a respeito dos direitos dos cidadãos que a proteção à infância, tanto no que diz respeito aos cuidados mais gerais, como a proteção aos possíveis violentadores sexuais passa a ser questão, sobretudo no século XX relacionada aos direitos humanos. Proteger uma criança, portanto, é uma questão que diz respeito a assegurar os direitos humanos básicos[3].
A pedagogização e a infantilização das crianças, aliadas às redes de proteção dos direitos das mesmas, se configura no que chamamos de ‘mundo infantil’, diferente do ‘mundo adulto’. Uma das conseqüências dessa separação de ‘mundos’ é a própria questão das relações sexuais entre adultos e crianças, antes negligenciadas, aparecem, sobretudo no Estado Moderno, como um problema e um fenômeno, precisando ser tratado, escrutinado, exterminado. Os sujeitos que circulam entre o “mundo infantil” e o “mundo adulto” passam a ser intensamente vigiados, sobretudo contemporaneamente.
Importa neste momento, registrar as mudanças que se operam no conceito de infância, pois, se os projetos modernos de infância constroem um tipo de representação de criança que exige uma pedagogização, as mudanças intensas nas configurações sociais da atualidade “[...] têm introduzido quebras, rachas, fissuras, na bem constituída arquitetura discursiva sobre a infância que nos foi legada pelo Iluminismo ou que nele se inspirou” (BUJES, 2005:186). Os mais diversos investimentos têm se entrelaçado para constituir o que entendemos por infância. É interessante perceber de que forma esses mesmos investimentos e representações correlatas à infância têm sido fortemente resignificados, sobretudo numa época de acelerado consumo e avanço tecnológico.
É na esteira deste “império de consumo” contemporâneo que um conjunto de autores tais como Felipe (1998, 2005a), Steinberg e Kincheloe (1999), Walkerdine (1999) entre outros, analisam as novas concepções de infância produzidas nas e pelas relações de consumo, através das pedagogias culturais. Segundo estes autores, a escola não é mais o único espaço de aprendizado dos valores e significados culturais. Isso significa apontar que, se a pedagogia teve que inventar uma criança e uma infância para o projeto moderno civilizador, certamente as instâncias midiáticas reinventam uma criança para o consumo de seus produtos: as crianças não aparecem mais como inocentes e, principalmente, imaturas. Por exemplo, nas propagandas publicitárias os meninos entendem tudo de computadores, video games e os sistemas digitais, e as meninas aparecem como pequenas mulheres provocantes[4], preocupadas com seus corpos, desfilando, fazendo poses e demonstrando que sabem bem o que querem no momento das compras.
O conceito de pedofilização está fortemente imbricado a este contexto contemporâneo de consumo e resignifcação das imagens dos infantes. Felipe (2003, 2005a) tem problematizado as conseqüências do consumo com relação à infância, pois o mercado, através de grandes empresas, investe na imagem e na adoração da figura infantil, na busca incessante de novos nichos de consumo. As crianças se tornaram ávidas consumidoras, além de serem objetos de consumo. Esse mecanismo do mercado acontece de maneira intensa através da publicidade, que demonstra a nossos olhos, que qualquer motivo ou imagem que possa estimular o consumo é veiculada, vendendo e incentivando de maneira sedutora a compra de produtos como uma grande novidade, mesmo não sendo. Existe, na publicidade atual, uma urgência em se produzir necessidades. Steinberg e Kincheloe (2001, p.24) tratam de tematizar a questão das propagandas voltadas para o universo infantil: “corporações que fazem propaganda de toda a parafernália para crianças consumirem promovem uma teologia de consumo que efetivamente promete redenção e felicidade através do ato de consumo” (grifos dos autores).
O consumo exarcerbado como um elemento significativo também atravessa o próprio conceito de pedofilização: ao mesmo tempo que atos pedófilos são vigiados, escrutinados e mesmo odiados, “[...] as crianças têm sido alvo de um forte apelo comercial, sendo descobertas como consumidoras e, ao mesmo tempo, como objetos a serem consumidos” (FELIPE & GUIZZO, 2003, cd-rom).

O corpo infantil vem sendo alvo de constantes e acelerados investimentos. Com o surgimento dos veículos de comunicação de massa, em especial a TV, as crianças passaram a ser vistas como pequenos consumidores, e a cada dia são alvos constantes de propagandas. Ao mesmo tempo em que elas têm sido vistas como veículo de consumo, é cada vez mais presente a idéia da infância como algo a ser apreciado, desejado, exaltado, numa espécie de ‘pedofilização’ generalizada da sociedade (op.cit).

O conceito de pedofilização, portanto, nos permite explorar de maneira investigativa a curiosa contradição que tem se estabelecido em nossa cultura, a saber: as campanhas de proteção à infância e combate à violência e pornografia infantil estão lado a lado com imagens erotizadas das crianças, especialmente das meninas (FELIPE, 2005a).
Landini (2000) também aponta nesta direção ao estudar a pornografia infantil. Se por um lado, fotos de crianças em poses sexuais são consideradas crime, por outro lado temos uma cultura que erotiza a imagem da criança. Segundo ela não existe apenas

[...] uma pornografia mas também uma erótica infantil, ou, em outras palavras, uma erotização da imagem da criança. Não é difícil encontrar propagandas e anúncios onde a criança é mostrada em pose sensual ou em contexto de sedução. Novelas mostram crianças com o mesmo comportamento de adolescentes. Até mesmo as músicas, seguindo a mesma linha da ‘música do Tchan’ ou ‘dança da boquinha da garrafa’ com conteúdo bastante sexual, passaram a ser cantadas e dançadas pelas crianças (2000:36-7).


Masculinidades e Sexualidades: mídia e construção do desejo

As revistas, de uma maneira geral, se constituem como um espaço de grande circulação de representações acerca da masculinidade e da feminilidade. É preciso ter em mente que as revistas não atuam num espaço vazio ou neutro de significados, muito pelo contrário. As reportagens, fofocas, dietas, receitas, ensaios fotográficos, entre outros estão atravessados por representações e significados presentes na cultura e que, por sua vez, atuam constituindo os sujeitos.
A partir da ótica dos Estudos Culturais, as revistas masculinas serão tomadas neste trabalho enquanto artefatos culturais. Segundo Silva (2003), os artefatos culturais são “sistemas de significação implicados na produção de identidades e subjetividades, no contexto de relações de poder” (p.141-2). Portanto, para o âmbito deste trabalho, as revistas não se tratarão de simples sistemas de informação ou entretenimento, mas sim como uma forma de conhecimento acerca da masculinidade que certamente atravessará as identidades sexuais e de gênero dos homens e das mulheres. Douglas Kellner (1995) contraria a idéia de que os artefatos culturais possuem um caráter neutro ou ainda meramente informativo:

Embora os apologistas da indústria da publicidade argumente, que a publicidade é predominantemente informativa, um exame cuidadoso das revistas, da televisão e de outros anúncios imagéticos indicam que ela é avassaladoramente persuasiva e simbólica e que suas imagens não apenas tentam vender o produto, ao associá-lo com certas qualidades socialmente desejáveis mas que elas vendem também uma visão de mundo, um estilo de vida e um sistema de valor congruentes com os imperativos do capitalismo de consumo (p.113).

Podemos afirmar que o espaço das revistas masculinas se configuram em um importante locus de circulação e produção de significados, representações e saberes a respeito da masculinidade, sobretudo nos contextos contemporâneos. Ao elegerem o tema da sexualidade como foco central de suas reportagens, as revistas receitam, indicam e sugerem determinados comportamentos sexuais aos seus leitores, tanto femininos quanto masculinos.
O universo masculino sempre desfrutou de uma maior liberalidade no que se refere à sexualidade, e isso é evidente com relação às revistas masculinas, tal como demonstra a própria revista Sexy (COSTA, 1995). A partir de tal premissa, que é principalmente cultural, a revista procura reforçar uma supremacia masculina no terreno da sexualidade, incentivando um comportamento sexual masculino liberado. Em um processo constante de estimulação da sexualidade masculina, a revista trabalha a partir de uma crença de que o erotismo masculino (isto é, a excitação) é fundamentalmente visual, ao contrário do erotismo feminino, que seria mais tátil. Fundamentada a partir desse regime de verdade, a revista Sexy expõe uma grande quantidade de mulheres nuas em suas páginas, dando à nudez feminina uma licenciosidade, ou seja, é sempre permitido ao homem olhar, desfrutar as fotos desnudas das mulheres.
A revista investe numa representação de masculinidade que considera o homem como um ‘voyeur erótico’ pressupondo também que a “arte de contemplação pornográfica só pode ser feita pelos olhos voyeristas masculinos” (COSTA, 1995, p. 12). Neste investimento existe uma espécie de ‘matemática sexual’, que, exposta na revista Sexy ensina somente a ‘conta de somar’: “mulheres sensualmente nuas + vontade + desejo + pornografia = homem viril, másculo” (idem). A revista investe, portanto, numa construção e afirmação da sexualidade masculina a partir dos termos da referida adição.

A revista Sexy procura convencer o seu leitor a moldar-se num tipo de comportamento sexual masculino. O homem deve ter o erotismo à flor da pele, pensar sempre em mulheres, desejá-las, tê-las, comê-las sexualmente. O desejo masculino de ‘abocanhar’ as mulheres, no sentido de degustá-las sexualmente [...] (ibidem).


Neste trabalho quero me prender com especial atenção, em como a revista Sexy articula a masculinidade heterossexual (seu público-alvo), com a utilização do universo infantil como recurso erótico. Um dos objetivos gerais deste trabalho é, portanto, buscar subsídios para problematizar com maior afinco a sexualidade masculina e seu alcance em nossa cultura, especialmente quando determinadas crenças, como por exemplo, a noção difundida do ‘impulso sexual masculino’ instituem regimes de verdade que, por sua vez, constituem de maneira diferenciada e em complexas relações de poder, as sexualidades masculina e feminina. Ao problematizar a masculinidade heterossexual na revista Sexy, busco justamente entender como a sexualidade masculina é vista e interpretada na cultura, uma vez que a revista não atua num espaço vazio de significados.
Para o âmbito desta pesquisa, a sexualidade não será tematizada como uma essência fixa ou estável dos sujeitos, mas sim como algo construído socialmente, resignificado ao longo de suas vidas e de muitas maneiras. Para Louro (2001) os “rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos e convenções” que constituem a sexualidade são processos culturais e históricos, tal como os corpos, que, mesmo possuindo uma materialidade apresentam significados e investimentos que também são culturais e históricos.
Cabe então nos perguntarmos como enxergamos a sexualidade, especialmente atravessada por questões de raça, gênero e classe (WEEKS, 2001). Não me aterei neste momento especificamente às questões de raça ou classe para pensarmos a sexualidade, mas certamente a questão do gênero é relevante. Afinal de contas, como já referido acima, as sexualidades masculina e feminina são percebidas e construídas de maneiras distintas na cultura.
Para Weeks (2001), por exemplo, a sexualidade feminina tem sido ao longo dos anos, definida em relação à sexualidade masculina, ou seja, a sexualidade feminina tem sido historicamente subsidiária da sexualidade do homem. Na tentativa de descrever ou definir a sexualidade, a metáfora mais corriqueira é a idéia da sexualidade como uma força incansável e avassaladora do ser humano. Tal metáfora está intimamente relacionada às nossas concepções sobre o desejo masculino, ou ainda a experiência sexual masculina. Isso significa apontar que, para este autor, a linguagem da sexualidade, em nossa cultura, é uma linguagem masculina, de um desejo masculino que sempre se impõe e é sempre avassalador.

[...] os sexólogos frequentemente perpetuaram uma tradição antiga, que via as mulheres como ‘o sexo’, como se seus corpos estivessem tão saturados de sexualidade que nem havia necessidade de conceptualizá-la. Mas é difícil evitar a sensação de que, em seus escritos e talvez também em nossa consciência social, o modelo dominante de sexualidade é o masculino. Os homens são os agentes sexuais ativos; as mulheres, por causa de seus corpos altamente sexualizados, ou apesar disso, eram vistas como meramente reativas ‘despertadas para a vida’ pelos homens, na significativa frase de Havelock Ellis (WEEKS, 2001, p. 41).

Felipe (2000) e Louro (1998) ao analisarem a construção da masculinidade e suas representações correlatas também salientam a estreita relação entre sexualidade e masculinidade em nossas sociedades: a construção da masculinidade está fortemente atrelada à sexualidade. Existe uma associação (e, por conseguinte, um investimento também), quase que mecânica entre masculinidade e sexualidade, onde “a representação do gênero masculino é articulada à sexualidade de um modo mais central do que a do gênero feminino” (LOURO, 1998, p.44).
O que importa a partir de tais apontamentos são os efeitos de verdade, ou seja, atentarmos para o fato de como tais premissas e normas culturais ganham uma ‘materialidade’ através das relações sociais. Podemos explorar aqui um exemplo dessa ‘materialidade’: vivemos em uma sociedade onde as profissões historicamente relacionadas às mulheres e ao universo feminino, viram fetiche e objeto de desejo em fantasias sexuais masculinas. Profissionais tais como empregadas domésticas, enfermeiras, secretárias, babás, comissárias de bordo (quem nunca folheou uma revista e se deparou com a foto, por exemplo, de uma ‘enfermeira erótica’?), e até mesmo figuras femininas que não possuem vínculo profissional, tais como colegiais, lésbicas e noivas são comuns nos cenários de desejo associados ao exercício da sexualidade masculina. Este tipo de vinculação erótica às imagens destas mulheres podem ser encontradas através de acessórios em sex shops e em ensaios fotográficos em revistas masculinas.
Entretanto, importa registrar que tais figuras eróticas podem ser vistas também em espaços menos especializados, tais como filmes, literatura geral, programas de TV, propagandas publicitárias, que vendem, falam e transformam as imagens dessas profissionais em figuras eróticas, sensuais, disponíveis e prontas para todo tipo de fantasia sexual, explorando uma noção de quanto os homens estariam sempre à mercê da sedução feminina, ou ainda, e o que mais nos importa neste momento para problematizar as revistas masculinas: o fato de que estas mulheres (profissionais ou não) estariam sempre à mercê dos desejos e fantasias masculinas. Segundo Weeks (2001), do ponto de vista histórico, são os homens que têm decidido e definido o que é necessário e desejável, sobretudo com relação à sexualidade.
A partir deste diferencial de poder, constituído por uma espécie de ‘supremacia sexual masculina’, é que, ao abordar a questão da sexualidade, temos na cultura, a construção de um ‘olhar masculino’, ou seja, um olhar bastante controverso que objetifica (ou seja, transforma em objeto) e fetichiza as imagens das mulheres como uma espécie de ‘sintoma’ e ‘mito’ da fantasia masculina, travestido de naturalidade, de uma possível ‘essência’ sexual masculina. É necessário perguntar se é este mesmo “olhar masculino” que objetifica e fetichiza as imagens das mulheres, com sua supremacia em nossa cultura, também não tem erotizado as imagens das crianças, especialmente as meninas.
Da mesma maneira que questionamos aqui os olhares masculinos lançados às mulheres e seus corpos, podemos nos perguntar se os olhares contraditórios que lançamos às meninas e garotinhas como pequenas sedutoras (WALKERDINE, 1999), em programas e propagandas da TV não são também os olhares masculinos. Cabe então perguntar: será que tais olhares sugerem uma disponibilidade dos corpos infantis, sobretudo dos corpos infantis femininos aos desejos adultos masculinos?
A demanda para que as mulheres adultas se vistam como meninas, enfatizando dessa maneira, uma imagem de sedução e ingenuidade atrelada a uma possível disponibilidade da ‘falsa criança’; da ‘falsa menina’ para o sexo, não seria uma demanda para a sedução, conquista e consumo masculino em nossa sociedade? Através das revistas masculinas, especialmente a revista Sexy, é que pergunto, se as fantasias adultas sobre as crianças em nossa cultura, não por acaso, são também as fantasias adultas masculinas de sexo e poder.

[...] fantasias adultas sobre crianças e a erotização das meninas pequenas não é um problema que diz respeito a uma minoria de pervertidos da qual o público em geral deveria ser protegido. Trata-se de fantasias disseminadas na cultura, as quais são também contrapostas, de forma igualmente vigorosa, por outras práticas culturais, sob a forma de práticas de bem-estar psico-pedagógicas e sociais que incorporam discursos da inocência infantil (WALKERDINE, 1999, p.84-5).

Para finalizar, importa apontar para o fato de que tais fantasias adultas, que busco argumentar através deste trabalho, são fantasias adultas masculinas, e não dizem respeito a um grupo de ‘pervertidos’. É preciso que isso fique muito claro. Tal como a autora acima apontou, estas fantasias são disseminadas na cultura, num espaço altamente disputado de significados.
Além disso, cabe ressaltar que a relação entre sexualidade masculina e o encantamento pela juventude, bem como seu poder especialmente libidinoso e sedutor não é algo exclusivo dos nossos tempos ou dos artefatos culturais. Na Ásia existe um mito chinês que acredita que o sexo com uma virgem incrementa o trabalho e o poder, além de tal crença ser também comum na África (LANDINI, 2000). Na Europa existe também uma crença bastante comum de que ao deflorarem uma virgem, os homens conseguiriam se curar de doenças infecciosas e sexualmente transmissíveis (TATE, 1999). Santos et al (2004) apontam que “o desvirginamento de uma mulher é ‘prato’ altamente cobiçado e sua conquista é generosamente celebrada no mundo da auto-afirmação da masculinidade” (p.42) e que, o sexo com crianças e adolescentes é uma das preferências sexuais apreciadas basicamente por dois motivos: o primeiro seria o fato de que as jovens possuem vaginas e ânus apertados, o que tornaria o sexo mais prazeroso, e, em segundo lugar, pela “satisfação simbólica de manter o vigor sexual da juventude, perdido na maturidade e na velhice, ou pelo desejo de se eternizar num corpo jovem” (op. cit.).

Referências Bibliográficas

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[1] Este trabalho está em andamento sob orientação da Profª Drª Jane Felipe.
[2] A título de exemplo, existem os mais diversos nomes que buscam explicitar as alternativas possíveis para o ‘novo homem’: ‘metrosexual’, ‘übersexual’, ‘gay na medida’, ‘emo-boy’, ‘new bloke’, ‘metrogay’, ‘novo machão’, entre outros. Esse tipo de lista está sempre em jornais, revistas e sites da internet.
[3] Segundo Felipe (2006) “a primeira organização no mundo dedicada a combater maus-tratos na infância foi a New Society for the Prevention of Cruelty to Children – NYSPCC (Sociedade de Prevenção da Crueldade contra Crianças de Nova York), criada em 1894. Em 1977 foi criada a primeira organização internacional dedicada a combater e prevenir os maus-tratos na infância: a International Society for the Prevention of Child Abuse and Neglect – ISPCAN (Sociedade Internacional para a Prevenção de Abusos e Abandono de Crianças. Já no Brasil, a primeira agência criada para esse fim foi provavelmente o Centro Regional de Atenção aos Maus-Tratos na Infância – CRAMI, de Campinas, SP, em 1985. Em 1988 foram criadas outras agências no ABC Paulista e São José do Rio Preto. Nesse mesmo ano foi criada a ABRAPIA – Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência. (FELIPE, ‘Afinal, quem é mesmo pedófilo?’ No prelo).

[4] Para as campanhas do Natal/2005, uma grande loja de departamentos exibiu uma propaganda onde uma garotinha ensinava o Papai Noel a desfilar, a ter ‘estilo’ e ‘personalidade’. Aliás, a garotinha não somente ensinava, mas ‘mandava’ o Papai Noel murchar ‘o barrigão’.

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