Elementos para pensarmos sobre
maternidades na contemporaneidade
Patrícia Abel Balestrin
(texto escrito em 2006 para discussão em aula sobre gênero e maternidade)
Se folhearmos jornais e revistas da atualidade não
será difícil encontrarmos inúmeras representações de maternidade que, muitas
vezes, estão associadas ao chamado “instinto materno". Cuidar, dedicar-se
inteiramente a este cuidado, amar de forma incondicional são algumas das
características veiculadas na mídia e nos programas de saúde que posicionam o
ser mulher e o ser mãe, muitas vezes, como praticamente sinônimos.
Um exemplo disto pode ser percebido na matéria
publicada no jornal Zero Hora do dia 04/09/2006 sobre uma sessão de amamentação
coletiva que fez parte da programação prévia do Encontro Nacional de
Aleitamento Materno. Cito apenas uma parte da reportagem para impulsionar
nossas reflexões:
“Convencida da importância da
amamentação, Débora mostrava orgulhosa a saúde da primeira filha. A mãe
resolveu se dedicar integralmente à tarefa de dar o peito durante o primeiro
ano de vida dela. Para isso, parou de trabalhar.
- E o pai tem participação importante nesse processo. É ele quem ajuda a criar
o ambiente propício para a amamentação e também assume a responsabilidade em
sustentar a família enquanto eu estiver cuidando da Eduarda – afirmou [a mãe de
Eduarda].”
A matéria enfatizava o esforço das mães que mesmo
com o fortíssimo vento na capital, não deixaram de participar do evento. A mãe
de Eduarda parece orgulhosa com a decisão de ter largado tudo para se dedicar
aos cuidados da filha e de terem estabelecido em seu lar a conhecida ordem
divisória: de um lado, o pai provedor e, de outro, a mãe cuidadora. Se, de
certo modo, esta mãe parece realizada com tal escolha, imagino o que as outras
mães podem sentir e pensar ao ler uma matéria como esta? Sentir-se-iam culpadas
por não estarem se dedicando integralmente a este cuidado que deve ser
intensificado nos primeiros meses de vida? Ao pai parece ficar a parcela de
ajudar a mãe a ser mais mãe neste primeiro momento, estimulando-a naquilo que,
afinal, apenas ela pode fazer...
Ao que parece, este encontro discutiu intensamente
os benefícios da amamentação, mas será que se discutiram também os prejuízos
maternos? Ou será proibido falar em prejuízos neste tipo de campanhas? O que
vale aqui é a glorificação da maternidade em detrimento da visibilidade dos
aprisionamentos que também estão se produzindo em tais práticas?
Dagmar Meyer (2002) no texto intitulado “As
mamas como constituintes da maternidade: uma história do passado?” faz
uma análise cultural em que procura “relacionar as condições de
emergência de políticas que definiam a maternidade em articulação com o
aleitamento materno nas sociedades ocidentais com a configuração atual dessa
política no Brasil”. (p.379) A autora utiliza para análise “aspectos/informações
extraídos, principalmente: da Lição 1 do Manual de Manejo e Promoção do
Aleitamento Materno (Manual de 1993)...; do site que o Ministério da Saúde
mantém para divulgar o Programa; de artigos de jornais do Rio Grande do Sul e,
ainda, de folhetos informativos produzidos na Semana Estadual do Aleitamento
Materno.”(p.379-380)
Dagmar Meyer, a partir de uma perspectiva
pós-estruturalista dos Estudos Feministas e Estudos Culturais, nos leva a
problematizar discursos que têm se produzido em torno da maternidade e da
amamentação desde o século XVIII, mostrando-nos que nem sempre esses discursos
convergem e convivem de forma harmônica, pelo contrário, produzem múltiplas e
conflitantes representações: “todas as representações de mulher,
maternidade ou amamentação produzem sentidos que funcionam competindo entre si,
deslocando, acentuando ou suprimindo convergências, conflitos e divergências
entre diferentes discursos e identidades; mas são algumas delas que, dentro de
determinadas configurações de poder, acabam se revestindo de autoridade
científica e/ou se transformando em senso comum, a tal ponto que deixamos de
reconhecê-las como representações.”(p.385)- ou seja, deixamos de
reconhecê-las como verdades que foram construídas e não naturalmente dadas e
acabam por se constituir em verdades inquestionáveis – “É assim que uma
delas passa a funcionar, num determinado contexto sócio-histórico e cultural,
como sendo a melhor ou a verdadeira maternidade, aquela que se transforma em
referência das ações assistenciais e educativas em saúde e a partir da qual as
outras maternidades são classificadas e valoradas".(p.386)
Evidentemente é de se perguntar: se algo que é
tido como tão natural e instintivo precisaria sofrer tantos processos de
pedagogização e disciplinamento?
Fragmentos de uma pesquisa:
Representações de sexualidade e maternidade num
curso de formação de professoras
Na pesquisa que estou realizando que tem como
questão central “onde está a sexualidade num curso de formação de
professoras?”, já é possível identificar algumas representações de sexualidade
que talvez possamos associá-las à maternidade. Por ser um curso formado
basicamente por mulheres[1] existe
uma marca de gênero bastante significativa neste cenário escolar. Um curso de
mulher para mulher, uma profissão que segue ainda feminizada. Neste sentido, é
preciso considerar que homens e mulheres experimentam e vivenciam a sexualidade
de formas diferentes. Parece existir um jeito feminino e um jeito masculino de
lidar com o sexo e com a sexualidade já que, em nossa cultura, para cada sexo
(mulher/homem) uma identidade de gênero (feminilidade/masculinidade) e uma
identidade sexual “normal” lhe são compulsoriamente atribuídas. Existem normas
regendo tais comportamentos.
A norma que rege a vivência da sexualidade tanto
para homens como para mulheres é pautada na heteronormatividade. E quando o
sujeito “escapa” à norma, a tendência é culpabilizar ou a família ou a escola
por terem sido relapsas e/ou incompetentes em ensinar o jeito correto de se
relacionar afetivamente, ou seja, que a escolha do objeto de desejo deve ser em
direção a alguém do sexo oposto. Seria preciso tantos investimentos,
terapêuticas e delimitações acerca dos desvios da norma se, de fato, as
identidades sexuais fossem dadas naturalmente e se constituíssem de forma assim
tão definitiva num determinado período da vida?
No que se refere a este investimento
heteronormativo, a ordem para os meninos seria: a escolha do objeto de desejo
deve ser por uma menina e quanto mais cedo isto ficar evidente, melhor; mais
garantida estará a norma heterossexual e menos trabalho para as professoras,
pais e mães neste sentido. Em relação às meninas, a espera pelo desejo do sexo
oposto pode estar intimamente relacionada aos modos como desempenha sua
feminilidade e, ainda que muitas transformações estejam em movimento, parece
existir um desejo constante de se vincular determinados tipos de feminilidade a
maiores ou menores chances de conseguir um “bom parceiro”. Então se percebe que
os meninos/homens têm sido os maiores alvos de ações homofóbicas, enquanto que
as meninas/mulheres o sejam de ações sexistas – a elas cabe investir mais na
afirmação da identidade de gênero, enquanto que a eles, na afirmação da
identidade sexual.
Existem inúmeros mecanismos que, de uma forma ou
de outra, dentro e fora da escola, “ensinam” modos de viver a sexualidade, os
prazeres, os desejos, as vontades, movimentando os processos de construção de
identidades sexuais. Guaciro Louro (2000) afirma que: “Na escola, pela
afirmação ou pelo silenciamento, nos espaços reconhecidos e públicos ou nos
cantos escondidos e privados, é exercida uma pedagogia da sexualidade,
legitimando determinadas identidades e práticas sexuais, reprimindo e
marginalizando outras.”
Num curso que é formado basicamente por mulheres,
talvez fique ainda mais evidente que a sexualidade não tem a mesma centralidade
na constituição das feminilidades como o tem para as masculinidades. Podemos
até supor que uma expressão máxima da sexualidade feminina ainda tem sido
atribuída ao exercício de uma espécie de maternidade. Parece existir uma
expectativa de que as mulheres, neste contexto escolar, manifestem seu “lado
maternal” de qualquer jeito e a qualquer custo, numa interpelação para que se
dediquem à profissão, ao curso, ao cuidado em geral como uma mãe deve
dedicar-se ao/à filho/a. O tão valorizado “instinto materno” deve manifestar-se
não apenas em direção aos/às próprios/as filhos/as, mas em direção às crianças
com quem trabalham, ou ainda entre as próprias colegas, e entre estudantes e
professoras/supervisoras. Acolher, auxiliar, cuidar daquelas que porventura
estejam, em determinado momento, mais fragilizadas são características que
passam a ser mais valorizadas e reconhecidas neste cenário “tipicamente”
feminino. Aquelas que não manifestam tais características parecem sofrer algum
tipo de rechaço por parte das outras.
Percebemos que a profissão-professora ainda é
muito associada à profissão-mãe. Num curso que prepara mulheres para
trabalharem com crianças é preciso haver um investimento nesta capacidade
dessas futuras professoras de cuidar, nutrir, acolher. Não está em questão aqui
o quanto isto é bom ou ruim, se é produtivo ou não tais atributos nas práticas
educativas. Mas talvez seja interessante pensarmos como essas representações de
mãe e professora foram se associando uma à outra ao longo da história e
perdurando de determinadas formas e não de outras; quando torna-se possível e
desejável que tais representações sejam ressignificadas e de que modos? quando
entram em conflito com outras representações que parecem não ser tão bem-
vindas nos espaços escolares?
Referências:
* LOURO, Guacira. (org.). Pedagogias da
Sexualidade In: LOURO, Guacira. O Corpo Educado – Pedagogias da sexualidade. 2ª
ed. Belo Horizonte: Autêntica, p. 7-34, 2000
* MEYER, Dagmar. As mamas como constituintes da
maternidade: uma história do passado? In: Mercado, Francisco; Gastaldo, Denise;
Calderón, Carlos. Paradigmas y diseños de la investigación cualitativa em
salud. Uma antologia iberoamericana. Guadalajara: Universidad de Guadalajara/
Universidad Autónoma de Nuevo León, 2002: 375-402
* Zero Hora, Porto Alegre, 04 de setembro de 2006,
p. 35
[1] Atualmente
apenas um rapaz realiza este curso, encontrando-se no primeiro semestre. Tanto
as turmas do segundo e terceiro semestres, como a equipe diretiva, as
professoras e supervisoras de estágio são todas mulheres.